Fábula da motivação – sobre cenouras e burros
Depoimento de um Coachee, Gerente Nacional de Vendas de uma Multinacional conhecida:
– Coach, por anos me pergunto se entendi bem esse negócio de motivação. O mundo corporativo engoliu a motivação ou o contrário? E essa palavrinha sempre vem junto com a tal da paixão. “Temos que motivar nosso time a cumprir desafios, realizar com garra para obter nossos resultados e tudo isso com paixão!”. Foi o que sempre aprendi. Quer um exemplo? Ok.
Convenção Nacional realizada em lugar paradisíaco. Mais de 700 pessoas chegando com colares havaianos, lindas garotas dançando axé, comida a valer, coquetéis de fruta, mar azul, sol de rachar. Tudo decorado, palco, iluminação, pirotecnia. O mestre de cerimônias era um ator famoso e tinha até um convidado especial pra falar de superar desafios – o maior jogador de basquete dos últimos tempos, querido por todos. Até uma montanha de bolas foi comprada pra ele autografar pra galera. A equipe de vendas estava com a adrenalina lá em cima, flashes pra todo o lado. E nós, gerentes da turma, tínhamos um briefing muito claro: manter a adrenalina da equipe em alta, com fogo nos olhos…
Tudo perfeito, sobe no palco o presidente da empresa, seus diretores e o ator famoso, toda a liderança da empresa reverenciando seus colaboradores. Fizeram um filme cheio de gente se superando, suando, babando. O tema: Futebol e Olimpíada, bem propícios. Muita gente não se segurou, lágrimas rolaram, celulares postando tudo no Facebook. Investimos um caminhão de dinheiro nisso tudo e muita gente não dormiu pra estar ali com toda a equipe, alegria geral…até o anúncio das metas pro ano. Ninguém suspeitava da briga nos bastidores. Os diretores trocaram socos e pontapés por um mês seguido. Um deles, meu amigo, confidenciou. Uma parte da diretoria concordava com a meta super extrapolada, mas os “de pouca fé” diziam que era loucura. Ganhou o grupo dos “ousados”, capitaneado pelo presidente – “botou na apresentação pra matriz aquele número insano, agora temos que assumir com determinação”. Saiu gente chamuscada, coach. O problema maior, é que a beleza do momento durou exatos 15 minutos e aquilo que era pra ser a famosa cenoura que vai na frente virou um pepino pra administrar, acredita? Na verdade, ficou difícil de saber quem era burro e quem era cenoura. Dali por diante, foram quatro dias de treinamento bizarro. A galera esqueceu o mar, o coquetel e as garotas dançando. Quase ninguém viu o mar, foram 16 horas diárias de treinamento pra lançar quatro produtos e não deixar as vendas das marcas consolidadas caírem. Apelamos para um case de negócios. Aqueles cases quilométricos, como uma gincana onde o que sobra no final, além das noites mal dormidas é o pó da equipe, só a capa do Batman. Mas os olhos precisavam continuar brilhando, olhos de sangue mirando o tal do horizonte azul. Afinal pagamos 100 mil pra um jogador de basquete dizer no palco: “vocês conseguem!”
Imaginando a narrativa do meu coachee como se fosse um filme, fica relativamente fácil saber o final da história. Passou um tempo, a liderança do momento já foi pra outra empresa, uns por opção, em cargos melhores, outros, porque não concordaram com a bizarrice toda, foram “descontinuados” ou se desgostaram. A força de vendas? Cada um foi para um lado, os mais resilientes até foram ficando, outros foram promovidos por terem ajudado a tirar o sangue do pessoal com a tal “cenoura” e outros foram embora para o concorrente. Claro que as vendas cresceram, mas alguém precisou ir até a matriz com um pendrive de slides explicar porque não chegaram na meta prometida. Desculpas dadas, desculpas aceitas e a promessa de compensar no ano seguinte – estão todos chegando em outro resort, pra uma convenção animal, com direito a meninas dançando, um jogador famoso falando de desafios, palco iluminado, tudo preparado…
Na, verdade o final da história pouco importa. Até porque, em essência, empresas são muito parecidas entre si, e saber surfar em situações como às da fábula acima faz parte do rol de competências de quem deseja uma posição executiva.
Motivação é algo pessoal, intransferível, vem de dentro para fora e pouco tem a ver com um momentum específico. A motivação está relacionada a motivos pelos quais a pessoa se move. Só esse aspecto já torna difícil tratar o tema como se fosse um jogo ou um transe coletivo. Assim como torna sem efeito o ato de querer motivar alguém. É construir uma casa começando pelo telhado.
Dan Pink, escritor americano especialista em motivação, propõe uma abordagem contrária ao famoso, exagerado e desgastado “bater e assoprar”. Ao invés de recompensar sucessos e punir fracassos, a ciência já tem fatos e dados para estimular o conhecimento da chamada “motivação intrínseca” – significa realizar algo porque é mesmo importante, porque cai no gosto das pessoas envolvidas, porque traz um sentido legítimo. Dan defende um sistema de crenças em negócios que considere AUTONOMIA (dar a direção na mão das pessoas), DOMÍNIO (estimular e dar condições de melhoria contínua às pessoas) e PROPÓSITO (despertar o desejo por fazer algo em função de sua importância legítima). Não por acaso, são palavras que definem os estilos mais efetivos de liderança: visionário com democrático e coach (ver artigo sobre este tema aqui).
Pensando desta forma, o tema da motivação assume contornos bem mais complexos. Eu chamaria isso tudo de engajamento, algo que dá muito mais trabalho, porque não é um atributo de poder e sim de liderança legítima. Em determinado momento, é necessário o coachee perguntar-se (sob risco de as respostas, se forem francas, levarem a um caminho sem volta):
- EU estou efetivamente sintonizado com o que minha empresa propõe?
- EU estou disposto a me ENGAJAR ou sinto que apenas cumpro um papel em troca de uma recompensa?
- EU me sinto especialmente estimulado desde quando acordo até quando durmo, independente do que venha pela frente?
- E minha equipe? Tenho pessoas suficientemente motivadas, haja o que houver?
- O que EU defendo para minha equipe é algo em que EU realmente acredito ou, de novo, EU estou caindo na cilada de interpretar um papel em troca de uma recompensa e me vitimizando?
- Qual o MEU propósito e qual o propósito do trabalho que realizo? Esses dois propósitos se conectam?
Talvez esse seja o início, o fio da meada, de uma fábula cujo final possa ser um pouco diferente do que vemos por aí. Veja o video de Dan Pink no TED (clique aqui). Vale muito a pena refletir a respeito.
Texto de autoria de Daniel C. Souza, executivo da área da saúde,com especialização em coaching e um dos fundadores da FTR Desenvolvendo Pessoas.
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